Aldrich e o seu western plus melodrama na segunda do Telecine Cult, O Último Pôr-do-Sol

PORTO ALEGRE – Volta e meia me pergunto sobre as gerações do cinema norte-americano. Onde colocar determinados diretores? Os pioneiros, com certeza. Os veteranos. A nova Hollywood. Houve uma geração que chamo de intermediário, que surgiu no fim dos anos 1940 e início dos 50. Admiro muito Anthony Mann e Nicholas Ray, e entendo o que dizia Jean-Luc Godard nos seus tempos de crítico. Ninguém conseguia criar um personagem na interioridade como Ray, na exterioridade como Mann. Se fosse possível unir as qualidades dos dois teríamos o maior diretor do cinema. Mas eu confesso que sempre tive uma queda por Robert Aldrich e Richard Brooks. E não estou me esquecendo de Sam Fuller, o mais outsider de todos. Lembro-me que, certa vez, um crítico brasileiro que até respeito tratou com menosprezo o tema da segunda chance, tão caro a Brooks. Seria uma coisa comum em Hollywood. Não creio que estivesse tão errado. O retorno ao lar, de …E o Vento Levou a E.T., define um conceito caro aos grandes autores de Hollywood, assim como a segunda chance. O importante é o que fazem com ele. Um Brooks, por exemplo.

Amo as trilogias informais, que talvez só existam na minha mente. Lord Jim, Os Profissionais, À Sangue-Frio. Grande Brooks. E amo Aldrich. Após o início retumbante, com as obras-primas do biênio 1954/55 – O Último Bravo, Vera Cruz, A Morte Num Beijo, A Grande Chantagem, Morte Sem Glória -, Aldrich pareceu ter perdido o rumo. No fim dos anos 1950, fazia filmes que levavam os críticos da época a se perguntar ‘O que terá acontecido a Bob Aldrich’? Não duvido que tenha sido por isso que, em 1962, fez O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, com Bette Davis e Joan Crawford, precedido, um ano antes, por O Último Pôr-do-Sol, com Kirk Douglas e Rock Hudson. O primeiro foi apresentado em Cannes, provocando escândalo. Bette e Joan, duas grandes estrelas, naqueles papeis. Um Aldrich grand-guignolesco. The Last Sunset, apesar dos temas – incesto, paixão -, nem escândalo fez. Os ‘críticos’ não entenderam nada. O Último Pôr-do-Sol terá sessão nesta segunda de western – amanhã – no Telecine Cult. Sugiro que vejam.

São filmes definidores, essenciais. Pôr-do-Sol parece uma síntese de tudo o que Aldrich fez antes. Baby Jane abre caminhos, antecipa o que está por vir, e não apenas Com a Maldade na Alma/Hush Hush Swett Charlotte, também com Bette. The Last Sunset foi escrito por Dalton Trumbo, que, após os anos sombrios da lista negra, conseguira assinar dois roteiros – consecutivos, simultâneos? – em filmes produzidos por Otto Preminger/Exodus e Kirk Douglas/Spartacus. Douglas não hesitara em demitir Anthony Mann do set de Spartacus. Trouxe o diretor substituto, Stanley Kubrick, na rédea curta. Kubrick nunca teve muito apreço pela saga do gladiador de Roma. Basta lembrar da frase de Peter Seller em Lolita – ‘Spartacus, set me free,” Devolva minha liberdade, deixe-me ir.

O xerife Rock Hudson persegue o pistoleiro Kirk Douglas. Chegam à fazenda do casal Dorothy Malone/Joseph Cotten. Carol Lynley é a filha. O casal está de partida numa travessia de gado. Hudson e Douglas juntam-se ao grupo. Douglas teve um affair com Dorothy no passado, mas quando Cotten desaparece ela se sente mais atraída por Hudson. Douglas volta-se para a garota. Ele se veste de preto, mas não é o Diabo que parece. Pausa. Jennifer Jones chegou mais tarde à vida do produtor David Selznick. Não duvido que ele tivesse feito dela a Scarlett de …E O Vento Levou, o que teria sido uma pena, porque o papel era talhado para Vivien Leigh, que o fez magnificamente. Em 1946, Selznick encontrou outra personagem de mulher indômita para Jennifer, a Pearl Chavez de Duelo ao Sol/Duel in the Sun.

Caim e Abel no Velho Oeste. Num quadro de disputa por terras, dois irmãos, Joseph Cotten e o baderneiro Gregory Peck, tornam-se inimigos irreconciliáveis por causa da bela, e sensual, Pearl. Peck, com aquele palito de palha no canto da boca, olha com desejo para Jennifer, deitada lânguidamente, com aquela blusa que deixa os ombros à mostra. O duelo final dos dois. Revi o filme na grande retrospectiva de King Vidor na Berlinale de 2020. Ao que consta, o filme foi iniciado por William Dieterle, demitido por Selznick. Quem dirigiu o quê? Por via das dúvidas, o rei Vidor fez outro monumento de erotismo com Jennifer no começo dos anos 1950 – Ruby Gentry/Fúria do Desejo. Dessa vez, Charlton Heston. O confronto dos dois nos everglades. É outro filme no meu panteão.

Duelo ao sol antecipa O Último Pôr-do-Sol no sentido de que ambos se situam na improvável confluência do western com o melodrama. O gênero masculino intercepta o feminino. Será que essas conceituações ainda valem? The Last Sunset foi preparado para Ava Gardner, mas quem ficou com o papel foi Dorothy Malone. Será a presença dela? Dorothy venceu o Oscar de coadjuvante por um sublime melô de Douglas Sirk, Palavras ao Vento, em 1956. Quem gosta de western e melodrama, como eu, tem aqui a raríssima oportunidade de desfrutar dos dois gêneros. Como um bom melô, a trama possui segredos de família, e reviravoltas. Carol coloca aquele vestido, que foi da mãe. Douglas e Hudson partem para o duelo final. Há uma última revelação.

The Last Sunset foi produzido no mesmo ano de O Homem Que Matou o Facínora, de John Ford, e Duelo ao Entardecer, de Sam Peckinpah. Inscreve-se no que, na época, era uma nova tendência. O crepúsculo do gênero, a desmistificação de mocinhos e bandidos, que muitas vezes não são mais o que parecem. A par do incesto, há um suicídio na trama, e o tema não era novo para Aldrich. Nunca vi Folhas de Outono, seu melodrama de 1956, com Joan Crawford, recebido a pedradas. Aldrich talvez se sentisse mais seguro para manejar o gênero. Mas não foi fácil. Diouglas, que podia ser um progressista em Hollywood, era autoritário nos sets dos filmes que produzia. Brigaram o tempo todo, o ator e o diretor, e até o roteirista. Como Kubrick em relação a Spartacus, Aldrich não tinha muita consideração por O Último Pôr-do-Sol, mas o filme é muito melhor do que ele – os filmes – do que ambos podiam avaliar.

Um novo Aldrich estava surgindo, e de alguma forma ele  conseguiu refazer seus clássicos dos anos 1950. Novos westerns, filmes de guerra, de gângsteres. Amo especialmente os filmes de mulheres de Aldrich, a forma como ele aborda o tema da homossexualidade em The Killing of Sister George/Triângulo Feminino e A Lenda de Lilah Clare, esse o seu Vertigo/Um Corpo Que Cai, não só pela presença carnal de Kim Novak, mas também pelo tema do duplo. Não sei se o que vou dizer soará como autocrítica, mea culpa, mas que seja. Sempre defendi esses filmes, e também o maravilhoso Os Pecados de Todos Nós, de John Huston, numa época em que a crítica, e não apenas em Porto Alegre – o fim dos anos 1960 -, valia-se de um artifício, a presumível decadência de Aldrich e Huston, para despachar esses filmes, sem se comprometer a favor, nem contra. Eu preferia as patadas de diretores heteros, como Aldrich e Huston, à autocomiseração de meu ídolo Luchino Visconti.

Até hoje nutro sentimentos ambivalentes por Morte em Veneza, de 1972. Não é é um filme do qual possa dizer que ‘gosto’, como Sedução da Carne, Rocco e Seus Irmãos, O Leopardo, Vagas Estrelas da Ursa e Violência e Paixão. À dissolução da maquiagem de Dirk Bogarde no desfecho da adaptação de Thomas Mann, prefiro, muito mais dura, a degradação da arcada dentária do rei Helmut Berger em Ludwig, em que me parece que Visconti foi muito mais crítico consigo mesmo. Tergiverso, como sempre. Pretendo rever amanhã o Aldrich até como forma de reavaliar o filme. Há décadas que não o vejo. Construí um filme no imaginário – o meu? -, quero ver se bate com o do diretor/autor que admiro tanto.

Published by

Uma resposta para “Aldrich e o seu western plus melodrama na segunda do Telecine Cult, O Último Pôr-do-Sol”.

  1. Aula! Hoje em dia tem gente com vergonha de melodrama. É tudo que mais gosto num filme. Começo, meio e fim. Não aquelas pretensões de fazer filme intelectual

    Curtir

Deixe um comentário

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora